Harviestoun
Old Engine Oil Porter e A Invasão Vertical dos Bárbaros (Mario Ferreira dos
Santos, Editora É Realizações, 2012)
Existe um
sentimento idêntico no apreciador de livros e no apreciador de cervejas
artesanais no Brasil, que é aquele típico do habitante de um país onde tudo o
que é de boa qualidade é muito caro. Se se é leitor assíduo e não possui meios
financeiros de bancar este habito, resta ao brasileiro comprar e ler os
modismos e coleções massificadoras, de grande tiragem editorial. Se se tem
prazer em tomar cervejas, as de boa qualidade vão, normalmente, ultrapassar a
marca de $15 a garrafa.
Neste
sentido, esta harmonização é bastante conveniente. Um livro desta importância,
alem do impressionante fato de que tenha sido reeditado recentemente (a grande
maioria das obras de Mario Ferreira dos Santos só pode ser encontrada nos
sebos, em péssimo estado de conservação), pode ser comprado por $30 reais nas
livrarias, enquanto que a OEO Porter, mesmo sendo uma preciosidade de uma microcervejaria
escocesa, me foi vendida pela bagatela de $20 reais (garrafa de 330ml).
Mas seria legitimo ou, pelo menos, politicamente correto harmonizar filosofia com cerveja? Bem, se a própria ciência gastronômica da harmonizaçâo entre bebidas e pratos, mesmo fundada em principios de combinaçâo entre diferentes enzimas e elementos dos ingredientes das bebidas e alimentos, é tâo subjetiva quanto as diferenças entre os apreciadores, mais ainda seria subjetivo um texto que pretende harmonizar um livro com uma bebida. Claro que, aqui, não partimos de princípios da gastronomia, mas de uma análise meramente analógica para promover tanto a degustação de uma boa cerveja quanto a leitura de um ótimo livro.
O grupo por
trás da OEO Porter, que faz com que esta seja uma das melhores representantes
do estilo no mundo, é a microcervejaria Harviestoun Brewery, localizada na
Escócia. Ali, são apenas 17 funcionários dedicados a produção de estilos
tradicionais de cerveja, que consolidaram o nome desta cervejaria entre as
melhores do mundo, com os clássicos, como Ola Dubh, Bitter & Twisted e
Schiehallion. A OEO Porter é uma mudança na receita da Ola Dubh Old Engine Oil, que recebeu este nome porque o seu criador, por ter trabalhado na Ford Motors, dizia que a cerveja tinha a aparência de óleo de motores velhos. De aparência preta e textura espessa, essa cerveja possui forte aroma de café e chocolate, certa acidez no sabor, com pouca retenção de espuma e um finish amargo.
Por sua
vez, o homem do livro é o filosofo Mario Ferreira dos Santos, brasileiro de
Tiete, São Paulo, que escreveu e publicou 45 volumes da sua Enciclopédia de
Ciências Filosóficas e Sociais, onde expõe a sua “filosofia concreta”, um modo
de pensar fundado em saberes apodíticos, aceitando apenas o que pode ser
demonstrado e rejeitando o meramente assertivo ou opinativo. A demonstração
apodítica não admite a possibilidade de erros, uma vez que os juízos são
universalmente validos, pois, “tendo um nexo de necessidade entre o juízo e o
predicado”, não pode ser diferente do que é, o que facilita alcançar a verdade
lógica (e até ontológica).
MFS
publicou com recursos próprios os seus livros, movido pelo sentimento de que,
ao contrario do que diziam as negativas dos editores para os quais submeteu
seus escritos, o brasileiro gosta, sim, de filosofia. Tudo que o brasileiro
precisava era, na verdade, de uma oportunidade para conhecer os grandes clássicos
do pensamento humano. Desta forma, Mário Ferreira fundou suas próprias
editoras, Logos SA e Matese SA, onde publicou traduções de grandes obras
clássicas ao lado dos livros que escrevia. Alem disso, foi pioneiro no sistema
de venda de livro a credito, de porta em porta.
Essa também
é a historia da maioria das microcervejarias. São cervejeiros caseiros e
amantes de cerveja, pessoas comuns e, normalmente, de baixa ou media renda,
começando por uma produção de 20 litros no quintal de casa, que colocam nas
costas e vendem ao bar mais próximo, e que crescem gradativamente, lutando
diariamente pelo reconhecimento dos consumidores, contra a concorrência das
grandes corporações e contra os tributos dos governos intervencionistas. O
próprio fundador da Harviestoun, Ken Brooker, começou como um cervejeiro
caseiro que costumava receber amigos para degustar a cerveja que produzia na
garagem de casa, em 1983, e, três anos depois, começou o pequeno negocio,
usando como tanque de fervura um tonel de fazer geléia.
A obra de MFS é uma denuncia contra a invasão
dos bárbaros, não como aquela que se dá pela ocupação territorial
(horizontalmente), por meio de incursões de exércitos inimigos, mas como a que
ocorre pela penetração na cultura (e, portanto, verticalmente), destruindo os
seus fundamentos e corrompendo o ciclo cultural. Neste livro, o termo “bárbaro”
é empregado no sentido daquilo que, além de inculto e incivilizado, é também
inimigo e pretende destruir toda e qualquer manifestação de cultura.
Mário Ferreira faz uma analogia a
cristalografia, para um aspecto de alguns cristais que é conhecido como
pseudomorfose, quando tais cristais são produzidos em circunstancias adversas
na natureza (como gazes que escapam por fendas de rochas) e adquirem formas
diversas daquelas esperadas pelo tipo de cristal correspondente produzido em
condições normais. Do mesmo modo, algumas manifestações intelectuais possuem
formas aparentemente cultas e civilizadas, mas o seu conteúdo é bárbaro, como a
desvalorização da inteligência, a supervalorização romântica da intuição e da
irracionalidade, a valorização da horda, do tribalismo, da força e da memória
mecânica, do nominalismo, do negativismo, do niilismo e da desumanização do
homem.
No âmbito
das cervejas, o inicio do século XIX, com a invenção de técnicas de
refrigeração industrial, viu o avanço da produção das lagers em larga escala,
para o publico de massa e que, gradativamente, foi valorizando o lucro em detrimento
da qualidade. Neste “reino da quantidade em detrimento da qualidade”, aos
poucos o malte foi sendo substituído pelos cereais não-maltados, como arroz e
milho, o lúpulo foi sendo substituído pelos extratos, a high-maltose foi
adicionada ao processo para acelerar a fermentação e, hoje, as grandes
corporações do ramo cervejeiro são capazes de produzir um lote em menos de uma
semana. E, se pudessem, alterariam as leis da natureza e fariam com que a
levedura trabalhassem mais rápido ainda, se fosse possível manter o sabor e a
própria aparência da cerveja. Basta que comparemos, em termos de sabor,
aparência, aroma, retenção de espuma, etc, uma cerveja da grande corporação com
uma cerveja, do mesmo estilo, feita artesanalmente na microcervejaria.
Este também
é o caminho percorrido pelas coisas do intelecto. MFS denuncia a tendência
bárbara do predomínio da quantidade sobre a qualidade, a ridicularização do
inteligente, da alta cultura e da filosofia especulativa. Denuncia, inclusive,
o que viria a acontecer com o seu próprio nome e obra, a conspiração do
silencio que sofreram e sofrem os grandes criadores e aqueles que elevaram o
pensamento humano, impingida pelos medíocres que sempre ocuparam os altos
postos. Há que se ter humildade para reconhecer uma inteligência superior a
nossa, coisa da qual o bárbaro não é capaz.
Ostracismo,
alias, é marca também do estilo Porter, uma cerveja que começou a ser fabricada
nos idos de 1700 como uma mistura de três outros estilos (uma Old Ale, uma Pale
Ale e uma Mild Ale), com o objetivo de criar uma cerveja mais barata a fim de
ser servida aos trabalhadores portuários (dai o nome, Porter). Ocorre que, com
a invenção do forno a gás e a possibilidade de se tostar o malte, este estilo
deixou de ser produzido. Desde então, as Stouts se tornaram a cerveja escura
por excelência. Foi apenas no final dos anos 70, com o renascimento do
movimento de cervejas artesanais, que estilos antigos como a Porter voltaram a
serem produzidos pelas microcervejarias.
Não é
nenhuma teoria da conspiração dizer que Mario Ferreira foi e é boicotado pela
universidade brasileira e pelos professores de filosofia. Apesar da pujante e
vasta obra filosófica e de ser o único brasileiro a ter um verbete inteiro numa
enciclopédia de filosofia italiana, onde é reconhecido como um filosofo de
pensamento universal, o seu nome é pouco ou nada citado nas universidades e
cursos de filosofia no país. Só recentemente é que seus livros voltaram a ser
editados, depois de mais de cinqüenta anos de silêncio.
Assim como as Porters antigas, que eram
cervejas muito fortes para os padrões atuais, a obra de Mario Ferreira é densa
e pode parecer complexa demais para o leitor do nosso tempo. Apesar de buscar
uma aproximação com o público geral por meio de uma linguagem menos técnica que
a usada na maioria de suas obras, precisamos entender que, alem deste ser um
livro escrito no final dos anos 50 e que contem algumas formas arcaicas do idioma,
MFS opta por utilizar o recurso de frisar aspectos ortográficos a fim de
retornar ao étimo latino da palavra, como forma de ressaltar o seu significado
etimológico. Esta edição, no entanto, recebeu notas de rodapé do editor,
tornando-a bem mais “palatável” para o leitor atual que as edições dos anos
50/60.
Um
sentimento de completo abandono é o que acomete o estudante sério e honesto,
aquele que anseia por um saber que seja positivo e construtivo, encontradiço,
no passado distante, em vultos intelectuais do porte de Aristóteles, Platão,
Pitágoras, Duns Scotus, etc., e que, hodiernamente, se depara com os
pseudo-mestres, sejam os “gênios” da auto-ajuda, como um Paulo Coelho, ou os
doutrinadores políticos travestidos de intelectuais, como uma Marilena Chauí ou
um Emir Sader, agentes da degradação intelectual e moral deste país. É só
diante de um verdadeiro mestre como MFS que podemos ter restituída a nossa
esperança em relação ao homem dos séculos vindouros. São estes tipos de falsos
mestres que Mario Ferreira mais combate neste livro, os pregadores do niilismo,
do negativismo, da irracionalidade, do sensualismo, do tribalismo e de todas as
filosofias que afirmam o que há de destrutivo e de animalesco no homem.
E, como no
reino tenebroso de Chauí e AmBev a qualidade é enjeitada pela quantidade, a
indiferença acadêmica para com o filósofo é análoga a situação ocorrida com a
Harviestoun Brewery, quando, em 2008, apos passar a integrar o grupo da
Caledonian Brewery Company, foi rejeitada pela Heineken após esta comprar a
Caledonian.
Hoje, esta
microcervejaria é parte da CAMRA (Campaign for Real Ale), um movimento inglês
que busca resgatar os estilos e modos de fabricação das antigas ales, que representa
um retorno aos estilos tradicionais de cerveja em detrimento da massificação
que domina o mercado cervejeiro. De maneira semelhante, A Invasão... é um livro
escrito por alguém que absorveu a filosofia tradicional e perene, das idéias
superiores, e, agora, denuncia tudo quanto obsta ou desvirtua o caminho para
este ensinamento superior (mathesis megiste). O filósofo pretende proteger o
nosso ciclo cultural de uma derrocada iminente, apressada pela inteligência
maliciosa que guia os elementos ativos corruptores do ciclo, utilizando-se dos
modos de ser bárbaros. Refuta, para tanto, a afirmação de que nenhum ciclo pode
pretender eternizar-se. Ora, se os ciclos culturais são contingentes, não se
pode estabelecer um rumo necessário, mas apenas hipotético. E a razão em
contrario, por também ser contingente, não pode ser absoluta.
(É
interessante notar que mesmo um gênio incomparável como o de Mario Ferreira dos
Santos foi capaz de uma humildade impressionante quando, ao terminar a escrita
do livro, o submeteu a leitura de diversos professores e intelectuais da sua
época, de posições filosóficas e ideológicas diferentes, para que dessem as
suas críticas. Assim, ao final do ultimo capitulo, MFS analisa boa parte destas
criticas e as responde).
A filosofia de MFS é mais rica e poderosa que a cultura
inteira do nosso pais, de um “gênio universal perdido num ambiente provinciano
incapaz não só de compreende-lo, mas de enxergá-lo”. Este livro pode ser a
porta de entrada para descobrirmos este grande vulto do pensamento universal, e
que seja melhor aproveitado ao lado de uma garrafa de uma das melhores
representantes do estilo Porter do mundo, a Old Engine Oil Porter da
Harviestoun Brewery. Seja para elevar o seu intelecto ou a sua apreciação de
uma boa cerveja, esta dupla formam uma ótima leitura e uma perfeita degustação.
E quando
Mario Ferreira afirma que “devemos ser os novos iconoclatas das falsas
divindades que nos querem impingir”, ele bem poderia estar se referindo as
adjunt light lagers.